sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

LANÇAMENTOS EM SENHOR DO BONFIM

Metalinguagens e cordéis

Na programação pré-natalina deste dezembro, a prefeitura carregou a mão na Semana Municipal de Cultura, que contemplou o lançamento de Jotacê Freitas. O condimento de artista irreverente, com tema poético-metafísico em período pré-natalino, resulta em choques e pendências filosóficas intermináveis. No palco ou no meio da praça.

“A poesia tem espaço reduzido na sociedade”– disse Jotacê Freitas, no sábado 10/12, pouco depois do duplo lançamento de Baianices, baianadas e baianidades, que veio numa edição diferente, reunindo 21 folhetos de cordel, separados em três partes: sete falando de costumes soteropolitanos, sete falando da sexualidade geral dos baianos e sete sobre coisas da cultura bonfinense. A curtição de palco foi no Teatro Reginaldo Carvalho, que ficou assim de poetas e artistas de Senhor do Bonfim e região. E o lançamento se completou com O rei cego e os filhos maus, que por ser um folheto com mais de 30 páginas é romance. Esse tem 40 páginas, feito em sextilhas e quatro sextilhas por página. Prá cordel é história longa, mas Jotacê já fez três.

Pois é, foi só acabar autógrafos e recitais lá dentro, Jotacê já tava cá fora, no Quiosque do Idelson na praça do Campo do Gado. Ele e uma galera viciada em poesia e reclamações contra bico seco. Especialmente ele parecia ser o mesmo Jotacê, mas não era. Estava rodeado de uma pequena galera de curtidores. [‘Cês tão vendo a capa’ - perguntou Ailton Ribeiro] “Cumpro meu dever de, como filho da terra, mostrar aos conterrâneos o progresso que faço na carreira literária nesta última fase” – disse Jotacê. [‘Vocês viram os aplausos naquela hora?’– indagou Gueu]. Os curtidores se remetem ao romance o Rei cego... E... Jotacê não resiste. [‘Naquela cadeira estava a Riana’ – lembrou alguém].

Se ligue, são explicações

Jotacê: Com esse cordel eu ganhei, em 2010, o edital do Minc (Ministério da Cultura) chamado Mais Cultura, Prêmio Patativa do Assaré. No Brasil foram 80 os contemplados, eu fui o 43º lugar. [‘Que quiosque é esse? Vai fechar?’]. Na Bahia, entre os oito contemplados eu fiquei com o 4º lugar, todos os ganhadores com direito a publicar três mil exemplares. E o prêmio foi de R$ 7 mil em dinheiro. [‘O Minc prendeu a grana por um ano, ta ligado? É por essas e outras que esse poeta aí, fã do Cuíca de Santo Amaro e do Gregório de Matos, o Boca do Inferno, ta ligado, já versejou a Dilma como rapariga do Lula, num cordel passado. Uaaau!’].

Jotacê: No meu projeto de elaborar a história do Rei cego e os filhos maus resolvi contemplar a região, mas com esse atraso do Minc o custo aumentou muito e... Esse projeto é baseado numa história que minha mãe me contava, com o fundo moral de como os filhos deviam respeitar os pais, a família... [‘Ta gelada não...’]. É um conto bem assentado em nossa cultura popular. Quando cheguei à Faculdade descobri que Câmara Cascudo pesquisou e transcreveu esse conto em várias regiões do país. O Ricardo Azevedo, pesquisador de linha mais moderada no folclore, também registrou esse conto em várias regiões do Brasil. É como ocorre com os contos de tradição oral, o contador vai adaptando, colocando elementos locais e as regiões vão assimilando. [‘Aonde é que ta aberto?” – “Bodega, a gente acha’].

Jotacê: Então, ao cumprir o meu projeto produzi minha versão [‘Pode encher meu copo’] para a região de Senhor do Bonfim. Botei a história onde ela tem de estar: na Serra da Maravilha, Barroca, Pebas, Tijuaçu... Antes eu inscrevi O rei cego e os filhos maus no Banco do Nordeste e não foi aprovado. Aí... Sacomé? [‘Dessa aí tomo uma dose já’]. Veio depois o edital do Ministério da Cultura, mas eu estava desiludido. Faltavam só cinco dias pra encerrar a inscrição, quando Geninho Xeleléo me ligou: – Jotacê, você não pode ficar de fora do concurso do Minc! Com um cordel desse não pode e não pode!

Gente, céticos também se guiam por sonhos!

Jotacê: Eu o iria publicar depois, por conta própria. Mas entrou aí uma história legal. Naquela mesma noite eu sonhei com a ex-esposa dele, Gal Sena Gomes. [‘A Glaucineide Rodrigues?’ – ‘Ta doido, foi o prefeito Paulo Machado’– ‘Não, no grupo de palmas fortes era também o Zé Antonio Oliveira...’ – O Zé Gonçalves também tava lá’] Ela ia jogando esmeraldas na rua e eu ia catando. Despertei e despertei. E decidi: vou inscrever meu projeto, mas da forma mais objetiva possível. Para o concurso do Banco do Nordeste eu tinha elaborado e apresentado 18 laudas; para esse do Minc, ano passado, resumi o projeto a uma página. E fui contemplado com o prêmio Patativa do Assaré. [... ‘e o Pedro Sá e a Mara Guimarães? ’ – ‘Perto da Iris de Guimarães?’ – ‘Tu já ta é mamado: perto do Benedito do Aroeira’].

Bom pro cinema, pra moral e pra místicos de carteirinha

Jotacê discorre no espírito da vitória com o cordel O rei cego e os filhos maus e transmigra: “É uma história com elementos mágicos, lances fantásticos, tramas fabulosas e analogia com a história bíblica de José do Egito. O rei fica cego e seus três filhos saem em busca da cura para a cegueira do monarca”. Vibra com razão, consegue transpor a lenda alienígena para o seu barro natal, em cordel! Teve que limpar com metro e rima temas de traições, covardias e mentiras para exemplificar com arte o valor da coragem, honestidade e amor. Mistérios descomunais. Lendas que podem ser reais. O rei volta mesmo a enxergar? Volta a ver a vida e a solidariedade pretendida, como a do respeito ao próximo que a mamãe Izabel ensinava no mesmo conto pro menino Bolacha, ops!, pro agora poeta Jotacê?

A história que é universal sai do poeta pro cordel e finca-se no bioma bonfinense com a inseparável dualidade da mentira/verdade. Põe gigante, cavalo branco encantado e defunto insepulto a fazerem artes dos diabos, para o bem e para o mal. Divide cabeças. [‘Esse bar é de quem? – Não é bar, é birosca!] Se no romance a luta não é só moral, é guerra que levanta poeira na Grota , quando vai pro altar de mesas de bares de praças, ganha o reforço de um Jotacê sublimado. [‘Essa barraca é Joãozinho, Zecrinha me disse no lançamento, hoje – ‘Hoje não, já é domingo!’]. Debaixo da confluência de duas algarobeiras Jotacê narrou o conto entre a fé e o medo, a fé e a dúvida e sorrindo, entre a dúvida e a dúvida, proclamou: “Deus acredita em mim”.

Foi imediatamente traído pelo arrepio no braço e pelo verso posto O Sono, livro em que divide opinião com Hélio Freitas, Regina Salgado, Edmar Conceição, Emiliana Carvalho, Maisa Antunes e Marcos Cesário, (idealizador da coletânea) em mini-ensaios filosóficos: “Quando eu morrer em Bonfim / De estupor ou azia / Irei feliz para o céu / Pra encontrar Virgem Maria”. Ah, Jotacê! Não é de hoje que, enlevado, como agora, um premiado, sai da linguagem-objeto da comunicação direta e exercita na plenitude a metalinguagem da poesia. Ele não denotou adesão à fenomenologia dos espíritos no falar freudiano de sonhos. Mas filosofou com amparos reticentes. Jotacê: Minha mulher é espírita...”. Prepara-te Walquíria para ilustrar, além de todos os livros, a capa de algum cordel kardecista psicografado pelo marido. [‘Quebrou o copo?’ – ‘Quebrou, mas já tava vazio!’].

Em nome do respeito ao próximo, o cordelista se embrenha no Beco Fino, botecos, trilhas de mato e esquinas de cachaça de raiz, cenário de lutas transcendentais e enigmáticas. [‘Sei, Ailton, aqui é a barraca do Joãozinho’]. Será que pela literatura crítico-educativa teria ele saído do patamar de Proudhon, Bakunin, Malatesta pra praia do Tolstoi, Dostoievski? Já se soma aos 72% que aprovam a presidenta Dilma Rousseff? Jotacê: Não. Estarei sempre com os valores do terceiro filho do rei cego. Ah Jotacê! E os dois filhos traidores, Jota? – Jotacê: Se fosse eu tivesse no lugar do primeiro, teria matado os dois sacanas, maléficos, vis, sujos, desrespeitadores, péssimos filhos, maus cidadãos.

“Pódi incostá, é tudo inteléquito” (bebum manda outro pro grupo de Jotacê)

No auge da tertúlia, na segunda mesa (ao lado da Igreja), aproximam-se dois visitantes: Pódi incostá, é tudo inteléquito, diz um. E o outro obedece: Posso jogar uma mão de prosa? Ailton, Záia, Gueu, todos fingem nada ver, nada ouvir. Jotacê que é o alvo da pergunta cede e escuta do chegado: Você tem uma irmã... É ou não é? Jota vacila e desconversa. [‘Menino, bota mais uma’]. Mas o bebum insiste: Acho que lhe conheço... Lá na escola, parece que lhe chamavam de ... de... de... Bolocha...

Depois dessas, tocar em irmã e sem tirar mistério revelar remoto apelido, o bebum manso vira foco e fica quase um simpático linguarudo, pelo menos até desembuchar. Nossa entrevista com Jotacê caiu e Jota mesmo que ressabiado admitiu: “É, tive mesmo esse apelido e agora me lembro de você”. Eu sou Paulinho, candidato a vereador – se revela o inesperado conviva. Bochichos rolaram [‘Quer voto’ – ‘Não, nos vistos bêbados’]. Tivemos que incorporá-lo. Mas ninguém escapou: Você tem irmã? Todos quiseram saber de todos e do bebum e quem mais houvesse. Quem quer ter irmã em mesa de bar onde quem chega molhado é adotado como sóbrio? A temperatura subiu e a sede voltou [‘Mais uma, três... seis... nem sei’].

Jotacê: Alguns poemas escrevo de madrugada. Acordo, penso verso por verso, levanto, registro e no dia seguinte é só passar a limpo. Nesse contexto acredito em algo além, na psicografia, tem outras pessoas nos ouvindo, nos falando. Mas no meu ceticismo, quando eu morrer saberei se isso é verdade ou não. Enquanto vivo nunca me apareceu um morto dentro da minha racionalidade. Quando experimentei a ayahuasca, o chá do Santo Daime, tive muitas visões, voltadas para a minha vida interior, da infância. Existe vida além da morte, morte pós-vida? São conflitos que a gente tem que resolver por meio da nossa arte. Muitos poetas não acreditam em inspiração.

Que ponto do cordel do Rei Cego toca em sua emoção? Jotacê: É o exemplo do filho mais jovem, honrado, confiável, vai e cumpre sua tarefa. Encontra o gigante na Serra da Maravilha, recebe dele uma missão descomunal, cumpre-a e o gigante desonesto ainda lhe impõe uma segunda e a terceira missão. O jovem destemido e perseverante não desiste. Qualidades que lhe garantem chegar ao objetivo, conseguir e levar a água milagrosa para curar a cegueira de seu pai.

Jotacê: A literatura, a arte poética, a dramática existem na razão dos conflitos da condição humana. Se não houvesse conflito tudo seria muito chato. O conflito move o homem a fazer a música, a poesia, o teatro. Ele quer mudar alguma coisa. [‘Mais... mais... É fraca. Aíííííí!!!!’] O artista é de alguma forma contestador. A gente não pode é transferir isso pro plano pessoal. Antes eu queria ser o poeta, o personagem, o salvador da pátria. Depois percebi que só posso ser o poeta (risos). Mas eu posso mudar, voltar a querer ser tudo, outra vez [Gargalhadas. ‘Ô Gueu, se segura!’]. Vozerio. Babel. [‘Você é ou não é poeta?’ – ‘Claro que sou, mas o maior é Jotacê!’ – ‘Você viu, Jota, o que disse o Záia?’].

Algazarra. Esculhambação. O bebum já virou Paulinho, de coração em preto-e-branco e de amizade com Jotacê, que permanece poeta e (quase) lúcido, que escuta Ailton, que fala para todos que pensam que estão sóbrios. E a sobriedade, de paredes brancas, ereta desde os tataravôs de Toinho e Izabel (pais de Jotacê) está ali a 50 metros, de lado para nós, testemunhando como uma Matriz. Não se manifesta. Observa passivamente (?) a filosofia de bonfinenses que madrugam por qualquer arte. A barraca de fubúia, ou bodega a la Jotacê, que é o último ponto de ar livre pra o estilo etílico, vai fechar.

Entre nós um ectoplasma de anjo da meia-noite ajudou a convergência comemorativa a se dispersar. [‘Vi Dr. Aurélio, ele também não perde manifestações culturais’]. Todos assumiram a verve de poeta em conduta natural. Ninguém mentiu, mas por serem poetas saíram todos [‘Argh! Argh! Nunca mais nós vai... vamo ... beb...’ – ‘Nós, não! Vo-cê-ês’] com receio de um indesejável e irreversível enquadramento no versículo de Fernando Pessoa – declamado por Jotacê ali, sob galhas de algarobas: “O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir a dor / A dor que deveras sente”. Daí em diante os bares passaram por cada um de nós. Fechados. Rodando. Lotados. Em direção aos próximos lançamentos.

Antonio Britto - Assessoria de Comunicação Social – P.M.Senhor do Bonfim

Fotos: Cinco Mil

3 comentários:

  1. Há tempos não leio um texto assim, tão diferente e criativo, nem parece entrevista. O cordel precisa deste tratamento, moderno, como algo importante que é. Parabéns à Jotacê pelos lançamentos no interior da Bahia, e ao jornalista Britto, pelo texto alucinado.
    Terezinha

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  2. Não temos como negar a importância do Cordel, tanto para a educação, como para a história. Li o livro e percebi o quanto a visão do poeta, mesmo satírica, está próximo da realidade. Bem que alguns trechos poderiam ser divulgados aqui para que os blogueiros conheçam e cheguem ao livro.
    Prof. Roberto

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  3. Senti-me lá em Bonfim, cidade natal do poeta, faltou algumas fotos da terrinha. O texto é ótimo!
    Quero mais baianices....
    patrícia

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